- Mesmo como potência global na produção de alimentos, o Brasil ainda convive com um paradoxo jurídico no campo: milhões de hectares de terras produtivas não estão regularizados
O agronegócio brasileiro é reconhecido mundialmente por sua capacidade produtiva, tecnologia de ponta e força nas exportações. Em 2024, o setor representou cerca de 25,5% do PIB nacional, movimentando mais de R$ 2,6 trilhões. Porém, por trás desse sucesso econômico, há um problema estrutural que ameaça a continuidade do crescimento: a falta de regularização fundiária.
Estima-se que aproximadamente 28 milhões de hectares no Brasil — uma área equivalente à do estado de São Paulo — ainda estejam em situação de ocupação irregular ou com titularidade incerta. Essa realidade atinge principalmente pequenos e médios produtores, que dependem do reconhecimento legal da posse da terra para acessar políticas públicas e financiamento agrícola.
A insegurança fundiária tem efeitos diretos na economia, no meio ambiente e na justiça social. Como destaca o advogado Enio Freitas, especialista em direito agrário e consultor jurídico de entidades rurais:
“A regularização fundiária é o alicerce jurídico do agronegócio. Sem título de terra, o produtor não consegue contratar crédito, não formaliza parcerias, não investe em infraestrutura e vive sob constante risco de litígios ou desapropriações.”
Além da ausência de documentação, outro entrave comum é a sobreposição de registros nos cartórios, gerando conflitos entre imóveis privados, assentamentos, áreas públicas e até terras indígenas ou quilombolas. O caos cadastral torna o processo de regularização lento e imprevisível, mesmo para aqueles com décadas de ocupação produtiva legítima.
O marco legal mais importante nos últimos anos é a Lei nº 13.465/2017, que instituiu novos mecanismos de regularização fundiária, especialmente para áreas rurais da União. Ela foi complementada pela Lei nº 14.620/2023, que atualizou pontos sensíveis, como prazos de ocupação, critérios de elegibilidade e possibilidade de autodeclaração em determinados casos.
Contudo, na prática, a aplicação dessas leis ainda é limitada por entraves institucionais. A falta de integração entre sistemas como o SNCR (Sistema Nacional de Cadastro Rural), o CAR (Cadastro Ambiental Rural) e os Registros de Imóveis prejudica a fluidez dos processos.
A advogada Ana Paula Thomaz, atuante na área de regularização fundiária e governança territorial, avalia:
“O problema não é só a lei, é a capacidade do Estado em aplicá-la com agilidade, transparência e segurança. Muitos processos de regularização demoram anos ou nunca se concluem por falta de estrutura nos órgãos responsáveis, especialmente em estados da Amazônia Legal.”
De acordo com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), cerca de 60% dos pequenos produtores brasileiros enfrentam dificuldades para acessar crédito rural por não possuírem documentação fundiária regular. Isso os impede de obter financiamentos via Banco do Brasil, BNDES ou programas públicos como o PRONAF.
Além disso, sem registro formal da terra, esses produtores não conseguem garantir seus imóveis como garantia em operações financeiras, o que limita sua capacidade de investimento e ampliação da produção.
“O produtor que planta há 30 anos em uma terra sem título está à margem do sistema financeiro. Ele não consegue competir com grandes empresas capitalizadas. Isso acentua a desigualdade no campo”, afirma Freitas.
Outro aspecto relevante é a conexão entre regularização fundiária e compliance ambiental. A legislação brasileira exige que o produtor rural esteja regularizado fundiariamente para validar seu Cadastro Ambiental Rural (CAR) e aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA).
Sem o CAR regularizado, os produtores enfrentam sanções, embargos e restrições de acesso a crédito verde ou incentivos para recuperação de áreas degradadas. Em estados como o Pará e o Mato Grosso, esse imbróglio tem gerado um número crescente de processos administrativos e judiciais.
Thomaz reforça: “A regularização da terra é condição para o ordenamento ambiental. Se o Estado exige responsabilidade ecológica, também deve garantir o direito de propriedade com segurança. Um produtor informal é também um agente ambiental invisível.”
Além dos prejuízos individuais, o impacto macroeconômico é relevante. Segundo o Ipea, a informalidade fundiária compromete cerca de R$ 13 bilhões por ano em potenciais financiamentos não contratados, sem contar as perdas indiretas em arrecadação de impostos, empregos formais e investimentos externos.
A insegurança jurídica também afasta investidores estrangeiros, que buscam ativos fundiários com baixa litigiosidade e segurança documental. Isso afeta, por exemplo, fundos internacionais voltados à agricultura regenerativa e financiamentos sustentáveis, cada vez mais exigentes em critérios ESG.
“É preciso que a regularização fundiária seja tratada como uma política nacional de Estado, não como iniciativa isolada de governos. É uma agenda de desenvolvimento, de justiça social e de soberania econômica”, resume Freitas.
Enquanto o Brasil alimenta o mundo, é hora de garantir que quem planta também colha segurança e dignidade. Porque no campo, não basta ter a terra, é preciso ter o direito sobre ela.