Entre tornozeleiras e vistos, “algoritmo da revolta” cria guerra simbólica sobre o Judiciário brasileiro

by Amarildo Castro
  • Para pesquisadora da FGV, interações nas redes escancaram o novo palco da política brasileira: likes, memes e ressentimento coletivo

A internet brasileira transformou, mais uma vez, os acontecimentos da política nacional em um espetáculo de indignação e teatralidade. E, segundo análise feita pelo Centro de Estudos em Marketing Digital da FGV/EAESP, o engajamento massivo dos usuários sobre as disputas ideológicas só reforça a cultura da espetacularização judicial presente no país, esvaziando cada vez mais qualquer possibilidade de consenso ou debates construtivos. O levantamento mostrou que, na última semana, foram mais de 78 mil menções à decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou ao ex-presidente Jair Bolsonaro o uso de tornozeleira eletrônica, contra pouco mais de 21 mil menções à revogação do visto americano de Alexandre de Moraes e outros ministros do próprio STF. 

“O que vemos, no fundo, é o triunfo da lógica algorítmica sobre o debate público. Assim como nos conflitos internacionais, episódios que envolvem figuras públicas e decisões institucionais se tornam matéria-prima para narrativas de pertencimento, ressentimento e vigilância moral. Nem toda menção negativa esconde repulsa; nem toda positividade significa apoio. Nessa arena, a percepção pública é, ela própria, objeto de uma guerra simbólica”, avalia Lilian Carvalho, PhD em Marketing Digital e responsável pelo levantamento. 

Por um lado, afirma Carvalho, no caso da tornozeleira de Bolsonaro o tom dominante entre as dezenas de milhares de publicações é, sim, negativo. Mas ao contrário do que sugerem leituras iniciais, não se trata de rejeição massiva à decisão em si, nem de defesa intransigente do ex-presidente. “Há, evidentemente, postagens que ironizam, lamentam ou questionam o rigor da decisão. Mas a tônica principal é de inquietação com o papel do Judiciário e, sobretudo, com a projeção internacional do que se decide dentro de nossas fronteiras. Inflamados pelos algoritmos da viralização, internautas projetam no episódio expectativas e frustrações sobre liderança e a própria ideia de justiça que, para muitos, já transborda as instituições”, diz. 

Na outra ponta, a mobilização sobre a revogação do visto americano de Alexandre de Moraes teve número expressivo, mas modesto diante da avalanche bolsonarista. “Não há, nas entrelinhas, um aplauso explícito à decisão dos EUA. Ao invés disso, a sensação recorrente é de reconhecimento de que, para muitos usuários, o gesto do governo americano soa como retaliação direta às escolhas e investigações conduzidas pela Suprema Corte brasileira contra Bolsonaro. A positividade não nasce, portanto, da empatia com um suposto revés para Moraes, mas da leitura estratégica de relações internacionais como palco de recados cifrados e respostas simbólicas”, analisa a pesquisadora. 

Explicando a assimetria digital

Por que há tamanha diferença de volume? Segundo Lilian Carvalho, o caso da tornozeleira mobiliza paixões mais primitivas e trincheiras políticas já sedimentadas. Bolsonaro, figura maximalista por natureza, catalisa tanto repúdio quanto romantização. “O episódio serve de espelho para disputas identitárias e polarizações que transcendem o fato jurídico”, afirma. 

Já a situação do visto de Alexandre de Moraes, embora impactante no xadrez diplomático, é mais abstrata: de acordo com a docente da FGV, seu efeito sobre a rotina do país é menos palpável, e a narrativa majoritária não é de antagonismo, mas de reconhecimento do tabuleiro geopolítico — menos ataque, mais leitura de cenário. “A lógica algorítmica sequestrou o debate público. A opinião virou performance. E a política, uma batalha de trending topics”, conclui Lilian Carvalho.

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