
Laços fortes e duradouros com amigos são importantes também para a saúde física e emocional das pessoas. Estudos mostram de forma inequívoca que as boas amizades são essenciais em todos os estágios da vida.
Tão importante é a amizade que ela é duplamente comemorada em julho: no dia 20 foi celebrado o Dia do Amigo, data com origem na Argentina, e nesse domingo, dia 30, celebrado o Dia Internacional da Amizade, data instituída em 2011, pela Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de proposta da sua agência para a educação, ciência e cultura, a Unesco.
O Dia do Amigo surgiu por ocasião da chegada dos astronautas à lua, justamente em 20 de julho. Ocorreu ao argentino Enrique Ernesto Febbraro que a alunissagem da Apollo 11 simbolizava a amizade universal, o que o motivou a enviar mil postais a pessoas em diversos países. Mais tarde oficializado no calendário da Argentina, o Dia do Amigo virou lei em alguns municípios e estados brasileiros.
A celebração estabelecida pela ONU, por sua vez, visa “reconhecer a relevância e importância da amizade como um sentimento nobre e valioso na vida dos seres humanos ao redor do mundo”, como consta na resolução que a estabeleceu. Curiosamente, a escolha do dia 30 de julho também é vinculada a um país sul-americano (ela foi inspirada em campanha nesta data, a Cruzada Mundial da Amizade, idealizada em 1958, pelo paraguaio Ramón Artemio Bracho).
SATISFAÇÃO, FELICIDADE, AUTOESTIMA
“A amizade é a coisa que mais pode afetar o nosso bem-estar e saúde mental, bem como a nossa saúde física. Passar tempo com os nossos amigos faz com que o cérebro libere endorfina e nos faz feliz”, sintetizou o professor de psicologia evolucionária da Universidade de Oxford, Robin Dubar, à Sociedade Britânica de Psicologia.
Na mesma linha, a enciclopédia Britannica afirma que “repetidamente estudos empíricos encontraram correlações entre amizades e a regulação da saúde” e que “as amizades têm, de fato, um importante efeito no ajuste socioemocional dos indivíduos ao longo da vida”. Mais que isso, elas servem “como uma fonte crucial de suporte social”, aumentando, em todas as faixas etárias, a satisfação, a felicidade e a capacidade de lidar com o estresse, “e até mesmo diminuindo vulnerabilidade a doenças”.
“Nos últimos anos, disciplinas como epidemiologia, neurociência, psicologia e sociologia demonstraram que a existência de conexões sociais sólidas têm valor preditivo em relação à longevidade e a boas condições físicas, cognitivas e mentais”, escreveu o médico Dráuzio Varella em coluna na semana do Dia Internacional da Amizade. “Por outro lado, ocorre o oposto na ausência dessas conexões”.
Na infância e na adolescência, afirma a Britannica, a amizade é fundamental para que a pessoa desenvolva um senso de autoestima: “Uma vez que amigos dividem pensamentos e sentimentos pessoais uns com os outros, amizades são uma oportunidade de prover e receber autovalorização”.
Uma análise de dezenas de estudos especifica que existe um looping nesse aspecto: ao mesmo tempo em que as relações sociais aumentam o nível de autoestima, uma maior autoestima estimula um número maior de amizades.
Embora não haja consenso quanto à idade em que formamos amizades, sabe-se que bebês agem de forma mais regular e previsível com conhecidos que com desconhecidos. Crianças sorriem, falam, compartilham e cooperam mais com amigos que com não amigos, e ainda que entrem igualmente em conflito com os dois grupos, se preocupam mais em negociar e resolver os atritos com colegas próximos para manter a amizade. Essas constatações são do livro “The Psychology of Friendship” (“A Psicologia da Amizade”, Oxford University Press, ainda sem tradução no Brasil), que avalia, em 17 capítulos, a amizade de diversas perspectivas, incluindo a de cada fase da vida.
A amizade na infância, afirma a psicologia, faz aprendermos sobre apoio, lealdade e igualdade. Ensina-nos sobre reciprocidade e sobre recompensas mútuas nas interações sociais, além de nos prover companhia e autovalidação. É, ainda, algo que nos dá maior capacidade de fazermos amigos mais tarde. É por tudo isso que a amizade leva desde cedo ao “ajuste socioemocional” de que fala a Britannica.
As interações entre as crianças evoluem e, até o final da pré-escola, afirma a enciclopédia, “a existência de amizades verdadeiras fica ainda mais evidente”.
CONFIANÇA ABSOLUTA
Gabriela Gonçalves da Silva, servidora pública, de 29 anos, tem “quatro melhores amigos inseparáveis” – Mariana, Geovanka, Fernanda e Victor Hugo – desde o ensino fundamental. Os cinco se conheceram em Anicuns, município 84 km a Noroeste de Goiânia, no então Colégio Positivo 7 de Julho.
Os cinco estudaram no mesmo ensino médio. Depois, Gabriela, Fernanda e Victor Hugo cursaram a mesma faculdade, indo literalmente juntos todos os dias para a aula no câmpus distante, em Trindade. Geovanka e Mariana se mudaram para Goiânia, mas todos estavam sempre em contato, comemorando aniversários, fazendo resenha.
Hoje, os cinco amigos moram na Capital e mantêm um grupo de WhatsApp ampliado, incluindo companheiros. “Somos realmente uma família”, diz Gabriela. Os vínculos criados com esses amigos, avalia, se explicam não só pelo tempo juntos, mas também porque, dizem, “a infância é uma fase em que temos tempo livre, não temos tanto problema, então acaba que vemos mais os amigos, fazemos mais coisas juntos, a família do amigo acaba se tornando nossa família também, a cumplicidade é muito grande”.
Como ocorre em tantas amizades duradouras, na desse grupo é percebido que, mesmo que haja afastamento em algumas épocas, nos reencontros é como “se nada tivesse acontecido”, como se o vínculo permanecesse intacto. Questionada sobre diferenças entre essas amizades e outras feitas mais tarde, Gabriela afirma que novos amigos são mais presentes “pessoalmente” na sua vida, dividem mais o trabalho, o estudo, as saídas à noite e as viagens. Mas, ressalva, “quando é para contar um segredo, uma novidade, quando algo acontece, recorro aos meus amigos de infância, é neles que eu confio absolutamente”.
Geovanka Sousa Paixão reverbera Gabriela, afirmando que mesmo que os cinco fiquem sem se falar por um tempo, ao se reverem é como se esse afastamento nunca houvesse existido. Sobre amigos feitos em diferentes idades, pondera que amizade está muito mais relacionada com os sujeitos que a envolvem que necessariamente com o tempo, sendo possível criar vínculos fortes com outras pessoas em fases posteriores.
Acontece de, com o passar do tempo, as mudanças de personalidade nos tornarem mais compatíveis com novos amigos que com aqueles feitos na infância – da adolescência em diante, as amizades ganham “uma natureza mais especializada”, ou seja, se tornam mais voltadas a atividades e aspectos específicos, afirmam os psicólogos.
Geovanka afirma: “Com certeza, às vezes as amizades podem estar enraizadas em quem éramos no passado, e, com o tempo, mudamos, temos outros gostos, vontades e jeitos, pode acontecer de uma amizade não acompanhar essas mudanças”. Trata-se, porém, diz, de um “risco que existe em qualquer tipo de relação”.
‘ESTAR ABERTO E DE FATO EXPLORAR’
As boas amizades são essenciais em todos os estágios da vida. Depois de nos ensinarem a socializar na infância, elas podem, na adolescência, superar os pais como fonte primária de apoio. A tendência é a de se passar ainda mais tempo com amigos, e também a de se ter mais amizades do sexo oposto. Além disso, nessa fase, mostram estudos, as características dos amigos e das amizades, assim como a dedicação que damos a elas, influenciam a adaptação à escola.
Na juventude, o círculo de amizades costuma se expandir mais que em qualquer outra época da vida – é quando às vezes tiramos fotos com tantas pessoas aglomeradas que quase temos dificuldade para nos encontrarmos ali depois. Aqueles que permanecem solteiros em geral têm uma proximidade emocional maior com seus amigos.
Sobre amizades na adolescência hoje em dia, a doutora em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-GO) e psicóloga clínica e do trabalho Ariana Fidelis afirma que o abuso de tecnologias agrava e muito a qualidade dos vínculos entre as crianças e adolescentes. “Não é, contudo, só estigmatizando a tecnologia como algo ruim que vamos mudar essa perspectiva. Precisamos usá-la para motivar e fomentar a vinculação por meio dos benefícios que ela traz. Toda associação equilibrada de diferentes mecanismos ajuda o ser humano. O problema da tecnologia está no seu excesso, não nela em si.”
Um uso excessivo da tecnologia inclusive ganhou, recentemente, um novo termo em inglês, “phubbing”, mescla das palavras “phone” (telefone) e “snubbing” (esnobar), em referência ao uso do celular como desculpa para se ignorar alguém presente. Também os adultos, claro, são afetados pelo uso excessivo da tecnologia, e por isso, atualmente “vêm usufruindo menos dos benefícios de uma amizade”, diz Ariana. Isso se soma ao fato de que, ao longo da vida adulta, casamento, paternidade, maternidade e outros compromissos podem enfraquecer vínculos sociais, a ponto de, às vezes, eles se reduzirem quase apenas ao parceiro e a pequenos núcleos familiares – é quando talvez nos encontremos com facilidade em qualquer fotografia que tiramos.
Entre os adultos casados, sem dúvida, a relação com o cônjuge pode suprir em boa parte necessidades de apoio, abertura, aconselhamento, companhia e reafirmação que os solteiros buscam em amigos, lê-se em um dos ensaios de “A Psicologia da Amizade”.
De todo modo, somar outras amizades às do círculo familiar tende a ser mais enriquecedor. Para isso é preciso, sublinha Ariana, “estabelecer ciclos de amizade com diferentes núcleos e pessoas, estar aberto para novos lugares e de fato explorar”.
Lúcia Feiber Sonego, de 75 anos, segue à risca essa ideia. Ficou viúva há dez anos. Depois de vivenciado o luto, agregou muitos grupos de amigos de várias maneiras. Usou as redes sociais para reencontrar amigos da faculdade que o tempo, as mudanças de cidades e os desdobramentos da vida haviam afastado. Outras amizades surgiram da própria família, de um convívio não só com filhos, noras e netos, mas também com os amigos do entorno deles. Houve ainda uma busca proativa por vínculos: “Sou muito sociável, gosto de ter amigos, eu procuro amizades. Tem o grupo de viagem com quem eu falo todos os dias. Os grupos da academia, da pintura, da dança, do café.”
Trata-se de amigos de momentos diferentes, que não são amigos entre si. “Amigos de circunstâncias diversas”, especifica. É um convívio com mais pessoas que antes dos 60. “Tenho até que me policiar para não falar com amigas o dia todo”, afirma.
‘O SÉCULO DA SOLIDÃO’
É claro que a amizade, em qualquer faixa etária, pode ter seus poréns. A psicologia aponta que um amigo com características negativas pode levar o outro a desenvolver os mesmos problemas, algo preocupante especialmente na adolescência. Sabe-se também que algumas das decepções mais dolorosas ocorrem entre amigos, dada a intensa afinidade envolvida. Há ainda a descoberta de incompatibilidades como as tão mencionadas cisões políticas ou meras diferenças de perspectiva que se acumulam.
Há também, certamente, momentos em que é benéfico ficar sozinho. Em “Sobre a tranquilidade da alma”, texto escrito há 2 mil anos, o filósofo Sêneca disse que “é preciso mesclar e alternar estas duas coisas: a solidão e o contato social. Aquela nos fará ter saudade dos outros, esta, de nós; e uma será o remédio da outra (…)”.
Feitas essas ressalvas, no entanto, os ganhos com a amizade parecem muito maiores que na falta dela. “Nos mais velhos, o isolamento e a solidão guardam relação direta com a velocidade do declínio cognitivo e com o aumento do risco de demência”, escreve Drauzio Varella. Mesmo a chance de desenvolver diabetes, exemplifica, é maior entre as mulheres de mais de 70 anos solitárias que entre aquelas com amigos. Depressão e ansiedade associados à solidão, por sua vez, afetam até mesmo crianças.
Existe, é claro, quem tenha dificuldade para fazer e manter amizades. Quanto a essas pessoas, a psicologia “pode ajudá-las a identificar possíveis medos, traumas ou até mesmo características de personalidade que podem estar impedindo-as de fazer esse movimento em busca de amigos”, explica Ariana Fidelis, da PUC-GO.
A solidão preocupa tanto os especialistas hoje em dia que se tornou tema de diversos livros. Um deles é “O século da solidão” (Ed. Record), da acadêmica britânica Noreena Hertz. Seu livro avalia a correlação entre vidas solitárias e política, economia, tecnologia, relacionamentos, trabalho, urbanização. Com grande repertório estatístico, ela aponta uma solidão crescente tanto entre idosos quanto entre adultos e millenials.
As mídias sociais, afirma, nos deixam “cada vez mais raivosos e tribais”. No crescente meio urbano, mais pessoas moram sozinhas, mais pedestres caminham com a cabeça abaixada na direção dos celulares (a ponto de já existirem “semáforos zumbis”, com luzes nas calçadas para evitar acidentes) e decrescem as “microinterações diárias”. Isso preocupa, diz Hertz, porque a solidão diminui nossa empatia, e “mesmo as conexões positivas fugazes com outras pessoas têm um impacto significativo na saúde”.
De modo correspondente, Ariana afirma que estamos diante de um exército de pessoas com inúmeras dificuldades de se relacionar, por medos, traumas e situações mal resolvidas. “Infelizmente, a busca pelo autoconhecimento ainda não é uma prática acessível para todos.”
Para piorar, o consumo de técnicas baratas e rasas de autoconhecimento difundidas na internet, que sempre responsabilizam somente o ser humano, sem considerar o contexto social em que a pessoa está inserida, também prejudica esse desenvolvimento pessoal de forma geral, diz Ariana.
Noreena Hertz também observa essa simplificação das causas da solidão. Ao afirmar que as pessoas solitárias podem ter dificuldade de admitir essa condição para si mesmas, Hertz complementa que elas acreditam que isso sugere um fracasso pessoal, em vez de consequências da vida e de toda uma gama de fatores sociais, culturais e econômicos que estão além do controle de um único indivíduo.
“Nada no século atual, de qualquer modo, impede que possa haver vínculos fortes, que existam amizades tão intensas e significativas quanto antes”, afirma Ariana. Os depoimentos de Geovanka e de Gabriela sobre o grupo de cinco amigos de infância são inspiradores nesse sentido. “A vida se torna muito mais leve quando sabemos que temos as pessoas certas ao nosso lado e podemos contar com elas, e elas têm certeza de que pode contar com a gente”, afirma Geovanka. “Eles melhoram a minha vida, pois sinto que tenho quatro amigos que realmente me amam e para quem eu posso contar tudo. Hoje, em um mundo tão tóxico, é raro ter amigos de verdade, e eu tenho”, orgulha-se Gabriela.
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Dica de leitura: a chamada “série napolitana”, da escritora Elena Ferrante, conta em quatro livros – “A amiga genial”, “História do novo sobrenome”, “História de quem foge e de quem fica” e “História da menina perdida” – a trama de união, competição, brigas e planos de duas amigas da infância à terceira idade na Itália.
Agência Assembleia de Notícias
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