O constitucionalismo dá conta do mundo em que vivemos?

by Amarildo Castro

*Por Douglas Zaidan

Durante muito tempo, o constitucionalismo foi a principal resposta das sociedades modernas ao problema do poder. Ao estabelecer limites jurídicos à atuação do Estado e afirmar direitos fundamentais, a Constituição tornou-se o eixo organizador da vida política e institucional. No entanto, diante das transformações profundas que marcam o mundo contemporâneo, cresce a dúvida: o constitucionalismo, tal como foi concebido, ainda é capaz de responder aos desafios do nosso tempo?

Essa é uma pergunta que costumo levar à sala de aula e provocar em meus alunos, não como um exercício teórico abstrato, mas como ponto de partida para repensar as bases do próprio Estado moderno. A ideia é exigir um olhar que vá além das disputas jurídicas do presente e retome as bases do pensamento político moderno. Autores como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau foram decisivos ao formular conceitos como soberania, legitimidade e contrato social, fundamentos que permitiram a construção do Estado de Direito e da própria ideia de Constituição. Foi a partir dessas reflexões que se consolidou a noção de que o poder político deveria ser limitado por normas e princípios compartilhados.

  • Essas ideias se materializam em experiências históricas distintas. No constitucionalismo inglês, por exemplo, a soberania se vinculou à atuação do Parlamento; no modelo norte-americano, à construção institucional baseada no federalismo; e, no constitucionalismo francês, ao racionalismo iluminista e à convicção de que o direito deveria limitar o poder político em nome de princípios universais. Apesar das diferenças, essas experiências ajudaram a afirmar a constituição como instrumento central de organização do Estado moderno.

Ao longo do século XX, especialmente no período pós-segunda guerra, esse modelo se expandiu e se tornou dominante. A constituição passou a ocupar papel central na separação de poderes, na limitação do poder estatal e na proteção de direitos fundamentais, com protagonismo crescente dos tribunais constitucionais e das supremas cortes. Essa expansão, contudo, trouxe consigo novas tensões.

A globalização econômica, o avanço das tecnologias, a intensificação dos fluxos de informação e as profundas desigualdades sociais evidenciaram os limites de um constitucionalismo centrado exclusivamente no Estado nacional. O direito público fragmentou-se, e os Estados passaram a enfrentar dificuldades crescentes para lidar, sozinhos, com problemas que ultrapassam fronteiras e desafiam suas capacidades técnicas, econômicas e políticas.

Nesse contexto, surgem questões incômodas, mas inevitáveis. É possível falar em Constituição sem soberania? O direito constitucional consegue responder a problemas globais em uma realidade marcada por assimetrias profundas? Propostas como o transconstitucionalismo e o cosmopolitismo constitucional indicam tentativas de repensar o papel do direito diante de uma sociedade global interconectada, na qual decisões relevantes escapam cada vez mais ao controle estatal.

Outro ponto central é a relação entre constitucionalismo e inclusão social. Constituições que não conseguem promover inclusão efetiva correm o risco de se tornarem meras promessas normativas. Afinal, em sociedades marcadas por desigualdades estruturais, heterogeneidade social e reprodução segmentada do poder, a eficácia do direito constitucional depende da capacidade de articular política e direito de forma funcional, sem perder de vista a centralidade dos direitos.

Esse desafio se torna ainda mais evidente quando observamos o constitucionalismo a partir do Sul Global. Na América Latina, por exemplo, mais de dois séculos de experiência constitucional revelam apropriações muito particulares da linguagem constitucional como instrumento de afirmação de direitos, soberania popular e justiça social. As dificuldades econômicas, culturais e sociais da região impõem desafios próprios à implementação das Constituições, distintos daqueles enfrentados pelos países do Norte Global.

As disputas, os desafios ao multilateralismo, a expansão dos direitos humanos e a persistência das desigualdades colocam em xeque modelos constitucionais importados e exigem leituras mais sensíveis às realidades locais. Por isso, nesse cenário atual o constitucionalismo precisa ser repensado não apenas como técnica jurídica, mas como projeto político e social comprometido com a inclusão e a justiça.

Mais do que um texto normativo, a Constituição é uma gramática de direitos e de organização do poder. Sua força, no entanto, dependerá da capacidade de dialogar com a complexidade do mundo contemporâneo e de oferecer respostas que não ignorem as profundas desigualdades que marcam a realidade global. O futuro do constitucionalismo passa, necessariamente, por essa revisão crítica.

*Douglas Zaidan é advogado e atua como professor de Direito Constitucional da American Global Tech University (AGTU).

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