O mês de maio é marcado pela Luta Antimanicomial, um movimento importante para a defesa de tratamentos justo e dignos para pessoas com problemas de saúde mental, que defende a valorização do fator humano.
“Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs”.
O trecho é do livro-reportagem “Holocausto brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex. A obra é sobre os maus-tratos ocorridos no Hospital Colônia de Barbacena (MG), o maior manicômio da história do Brasil, onde morreram pelo menos 60 mil pessoas. Para evitar que casos como este se repitam e lutar pelos direitos das pessoas com transtornos psicológicos e psiquiátricos, 18 de maio é marcado como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Antes da Reforma Psiquiátrica, promovida pela Lei Federal nº 10.216/2001, os cuidados em saúde mental no Brasil eram exclusivamente guiados pelo viés da institucionalização. Conforme explicita o filósofo Michel Foucault em “A História da Loucura”, essa estratégia não visa o cuidado, mas sim o enclausuramento. Pessoas com doenças psíquicas e outros marginalizados foram sistematicamente excluídos do convívio em sociedade.
Conforme conta a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenadora do projeto “Memória da Saúde Mental em Goiás“, Larissa Arbués, os manicômios são a expressão máxima da institucionalização das pessoas consideradas “loucas”. “O manicômio não é um ambiente de cuidado, é um local que propõe isolar os indivíduos com transtornos mentais por tempo indeterminado”, completa.
Os que conseguem ter alta acabam caindo no ciclo apelidado de “porta giratória”, conta Arbués. “O paciente fica internado e, quando sai, perde seus vínculos e não recebe o apoio que necessita, então, acaba voltando para a internação”.
“O manicômio é expressão de uma estrutura presente nos diversos mecanismos de opressão. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres”, caracteriza o Manifesto de Bauru, documento considerado um dos marcos da luta antimanicomial brasileira.
A psicóloga Ana Carolina Marques explica que a lógica manicomial cumpre mais uma função de esconder aquilo que as pessoas não querem ver e não têm condições de acolher do que de oferecer tratamento ou cura. “Pelo contrário, ela priva o sujeito da convivência com sua família e comunidade, precarizando relações de afeto e apoio, além de cronificar as condições de saúde dos internos”.
A ideia de resolver o problema do transtorno mental com a institucionalização de quem sofre remonta ao século XVII, quando surgiram os “asilos de alienados”. Segundo a professora da UFG, Larissa Arbués, inicialmente, a intenção era positiva, mas é uma ideia que não se sustenta porque não possui propostas terapêuticas. “Ao longo do tempo, essas estratégias se tornaram mecanismos de tortura e de violação dos direitos humanos”, detalha.
Além disso, pesquisas apontam que a implantação do modelo manicomial no Brasil está ligada a um ideal de modernidade cujo argumento fundamenta-se na ordenação das cidades a partir do enclausuramento dos “loucos”, dos “anormais”. O foco é a “civilização dos espaços”, não o tratamento dos que precisam de cuidado.
“Lutar pelos direitos dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”, defende o Manifesto de Bauru.
A Reforma Psiquiátrica
O transtorno mental não pode condenar a pessoa ao isolamento. Em âmbito global, dá-se destaque às práticas do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que, na década de 1960, revolucionou o tratamento a partir de sua abordagem libertária.
Com os resultados positivos que alcançou na Itália, a metodologia de Basaglia passou a ser recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a partir de 1973, dando caráter mundial ao debate.
Nesse sentido, a luta antimanicomial surge para contrapor a lógica vigente de exclusão e maus tratos. No Brasil, em 1979, foi criado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). O 1º Congresso Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental, no dia 18 de maio de 1987, em Bauru (SP), marca a gênese do movimento antimanicomial, dando continuidade à luta pela nova psiquiatria.
A professora da UFG, Larissa Arbués, resume: “é um movimento político e social que surgiu a partir de várias faltas, a de humanidade e de tratamento principalmente”.
E completa: “A ideia parte de um pressuposto de que cada sujeito é singular e procura viver da melhor forma que consegue. O transtorno não deve ser um estigma, ele é apenas uma forma diferente de estar no mundo. Por isso, a tônica da luta se pauta pelo cuidado e pela liberdade, que são deveres do Estado e direitos do cidadão”.
A Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) defende que a luta antimanicomial é a resistência à mercadologização da vida. “Não tem a ver só com o método de “tratamento” psiquiátrico. Ela está relacionada com as entranhas de uma sociedade construída sobre opressões, ela é combate, enfrentamento, dessas opressões”.
A lei federal que instituiu a Reforma Psiquiátrica é resultado direto do movimento antimanicomial. As primeiras tentativas ocorreram em 1989, quando o então deputado federal Paulo Delgado (PT-MG) protocolou um projeto de lei que sugeria proibir a construção de novos hospitais psiquiátricos e a contratação ou o financiamento de novos leitos nos já existentes. Apenas em 2001 uma legislação definitiva foi avalizada pelo Congresso Nacional.
Apesar de não conter as proibições visadas no texto original, a norma que instituiu a Política Nacional de Saúde Mental criou dispositivos para garantir o cuidado sem perder de vista a liberdade, autonomia e cidadania das pessoas com transtornos psicológicos e psiquiátricos
Os manicômios passaram a ser substituídos por serviços de base territorial e assistencial regulamentados pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A matéria prevê a internação do paciente apenas se o tratamento fora do hospital se mostrar ineficaz.
A RAPS, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), reestruturou a assistência ao sofrimento mental e atende desde os transtornos mais graves até os menos complexos. Segundo o Ministério da Saúde (MS), o acolhimento tem como base identificar as necessidades assistenciais, aliviar sofrimento e planejar intervenções medicamentosas e terapêuticas conforme cada caso.
Indivíduos em situação de crise podem ser atendidos em qualquer serviço da RAPS, formada por unidades com finalidades distintas, de forma integral e gratuita, pelo SUS. A rede é composta por serviços variados, tais como: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); os Centros de Convivência e Cultura, as Unidade de Acolhimento (UAs), e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos CAPS III).
Em Goiás, a inexistência de manicômio judiciário, garantida em 2006 pelo Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), é uma conquista da luta antimanicomial. Reconhecido no Brasil e exterior, o Paili é uma iniciativa inédita que oferece assistência e tratamento humanizado aos doentes mentais infratores.
O programa tem como principal atividade o acolhimento de pacientes com medida de segurança, no caso loucos infratores, como ainda é mencionado pelo Código Penal, procedendo a avaliação psicossocial. O caso é acompanhado e mediado entre o ato jurídico, a saúde e a sociedade até o final da relação do paciente com a Justiça, visando a não reincidência do ato infracional e sua inserção social.
A operacionalização é possível a partir de uma parceria que envolve a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES-GO), Secretaria de Estado da Administração Penitenciária e Justiça, Ministério Público Estadual, Tribunal de Justiça do Estado e as secretarias municipais das cidades que aderiram à proposta do programa. De acordo com a SES-GO, a taxa de reincidência gira em torno de 5%.
Desafios
Na avaliação de Larissa Arbués, a Reforma Psiquiátrica representou um grande avanço para romper com os manicômios e lutar pelo atendimento humanizado e em liberdade. Entretanto, ainda há muito com o que se preocupar e a luta por políticas públicas que integrem, não criminalizem e não excluam está longe de acabar.
Levantamento feito pelo MS, em 2023, a pedido do jornal O Globo, apontou que há 198 hospitais psiquiátricos em atividade no Brasil. As instituições somam 13 mil leitos em todo o país. Enquanto isso, os CAPS não têm aumento de recursos financeiros desde 2011 e, em 2017, uma portaria garantiu elevação no aporte aos hospitais psiquiátricos.
A mais recente inspeção do Conselho Federal de Psicologia e Ministério Público, realizada em 2018, identificou violações em todas as 40 instituições que foram visitadas. Os problemas vão desde estrutura física precária até violência física e privação de sono.
Como outros desafios, a professora da UFG destaca o crescente financiamento público de comunidades terapêuticas, instituições privadas de internação para tratamento de pessoas adictas e as recentes tentativas de revogar dispositivos legais que estabelecem a política pública de saúde mental.
O tema é pautado pela atual gestão do Governo Federal desde a transição, quando o grupo temático de saúde apontou ser necessária a retomada de financiamento de modelos em oposição à lógica manicomial. A atual chefe do MS, Nísia Trindade, prometeu atenção especial à saúde mental ainda em seu discurso de posse.
Implantar efetivamente a atenção psicossocial exige uma transformação de cultura em relação ao fenômeno do adoecimento mental, observa Larissa Arbués. “Precisamos nos reposicionar como sociedade. Enquanto não houver essa mudança no olhar das pessoas, acho difícil conquistarmos outras coisas”.
Além disso, complementa a professora, é preciso que as leis que já existem sejam aplicadas, principalmente quanto ao financiamento público adequado para a RAPS e formação profissional desde a graduação.
“O Legislativo ajuda muito nesse desafio porque as políticas precisam ser criadas e a aplicação necessita ser fiscalizada. A Assembleia Legislativa, em coro com o movimento social, pode trazer uma força muito importante para o movimento antimanicomial”, encerra.
Saúde mental
Segundo relatório da OMS, com base em dados de 2019, em âmbito global, quase um bilhão de pessoas vivem com algum transtorno mental. Dados de estudo da Universidade de Harvard indicam que, das dez doenças mais incapacitantes em todo o mundo, cinco são de origem psiquiátrica: depressão, transtorno afetivo bipolar, alcoolismo, esquizofrenia e transtorno obsessivo-compulsivo.
De acordo com o MS, 3% da população geral sofre com transtornos mentais severos e persistentes; mais de 6% da população apresenta transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas e 12% da população necessita de algum atendimento em saúde mental, seja ele contínuo ou eventual.
Apesar disso, de acordo com a OMS, o bem-estar mental tem sido uma das áreas mais negligenciadas da saúde pública, recebendo bem menos atenção e recursos de que necessita e merece.
A psicóloga Ana Carolina Marques afirma que há uma relação quase intrínseca entre o estigma quanto aos cuidados com a saúde mental e a institucionalização das pessoas com transtornos psiquiátricos. “Isso porque ela é um método que não se constitui apenas pelas paredes de um lugar físico, mas sim por uma lógica, um discurso de excluir e estigmatizar a doença. O sujeito se constrói em comunidade através de suas relações com outras pessoas e com o ambiente onde está inserido, ele é um ser social. Privar alguém de suas relações e do mundo é privá-lo do que nos torna humanos”.
A profissional acredita que o combate ao preconceito começa pela compreensão de que o adoecimento psíquico é multifatorial porque envolve, necessariamente, os contextos histórico, político, social e econômico. “Nada disso ocorre de maneira isolada ou apenas por fatores genéticos, assim, é algo a que todos nós estamos suscetíveis em algum nível”.
Entretanto, segundo Ana Marques, é preciso também cuidado para não banalizar o tema e acabar estimulando a patologização daquilo que é comum à experiência humana. “O sofrimento faz parte da vida de todo mundo, cada um sente, a seu modo, diante de experiências de desprazer. Já um transtorno é um sofrimento patológico, que causa desordem no funcionamento psíquico, causando prejuízo nas atividades do dia a dia”, detalha.
Para a psicóloga, a saída é clara: investir na disseminação de informações seguras, baseadas na literatura científica, além do acesso a tratamentos gratuitos e de qualidade para a população em geral.
Em pauta no Parlamento goiano
Na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, a saúde mental é um dos temas que recebe destaque entre os parlamentares. Um exemplo é a Lei Estadual nº 21.776/23, que institui a Semana Estadual da Luta Antimanicomial, a ser celebrada anualmente na terceira semana do mês de maio. A iniciativa foi da ex-deputada estadual e agora, federal, Lêda Borges (PSDB).
“O movimento da luta antimanicomial faz lembrar que, como todo cidadão, essas pessoas têm o direito fundamental à liberdade, o direito de viver em sociedade, além do direito a receber cuidado e tratamento sem que para isso tenham que abrir mão de seu lugar de cidadãos”, destaca a parlamentar.
A Lei Complementar nº 179/23, de autoria do deputado Cairo Salim (PSD), alterou a legislação que estabelece as diretrizes e bases do Sistema Educativo do Estado de Goiás para incluir medidas de conscientização, prevenção e combate à depressão, à automutilação e ao suicídio entre crianças, jovens e adolescentes, nos ensinos fundamental e médio.
Além disso, o assunto é tema de vários projetos ainda em tramitação na Casa. O deputado Lucas do Vale (MDB) pleiteia criar o Grupo de Trabalho Interinstitucional de Saúde Mental do Estado. A equipe sugerida pelo texto de nº 519/23 seria composta por integrantes dos três Poderes, universidades e órgãos auxiliares, para que haja a elaboração conjunta de políticas públicas sobre o tema.
Há também, a título de exemplo, a proposta de Bia de Lima (PT), que estabelece medidas de proteção e assistência à saúde mental dos profissionais da educação em exercício em Goiás. Ou então a sugestão de Karlos Cabral (PSB) em instituir uma política estadual para atenção à saúde mental dos afetados pela covid-19. De acordo com o legislador, o objetivo é minimizar os efeitos colaterais psicológicos das pessoas que foram contaminadas com a doença durante a pandemia.
Outra forma de atuação do Parlamento goiano é a proposição de debates entre diferentes setores da sociedade. Na última segunda-feira, 15, uma audiência pública promovida por Mauro Rubem (PT) colocou em pauta a “Prevenção em Saúde Mental”. Segundo o deputado, nesses últimos anos, a sociedade está assistindo à covid, à concentração de renda, ao trabalho escravo, à vulnerabilidade infantil, à violência contra a mulher, e ao individualismo. “Estamos vivendo um processo muito duro e uma sociedade que vem adoecendo cada vez mais, por isso, a importância em debater a saúde mental”, destacou.
Em setembro de 2022, a parceria entre Escola do Legislativo e a Comissão da Criança e do Adolescente resultou em uma série de palestras com o tema “Setembro Amarelo: estratégias para a proteção da saúde mental de crianças e adolescentes”.
Texto: Izabella Pavetits
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