DF – Maria Valéria Rezende é a homenageada do Encontro Regional das Letras

Escritora Maria Valéria Rezende. Foto Adriano Franco - Divulgação

Texto: Déborah Gouthier. Edição: Sâmea Andrade/Ascom Secec

Entre os dias 16 e 17 de março de 2023, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF (Secec) e a Biblioteca Nacional de Brasília (BNB) realizam o Encontro Regional das Letras: Mulheres Escritoras do Centro-Oeste. O evento faz parte das celebrações do Mês Internacional da Mulher e toda a programação – que envolve exposições, sarau e mesas temáticas – foi pensada com o intuito de abrir canais para a difusão, promoção e intercâmbio entre mulheres escritoras.

Se o evento prevê o incentivo e a valorização da “literatura de autoria feminina”, nada mais justo do que homenagear a obra e a vida de Maria Valéria Rezende. Nascida em 1942 em São Paulo e radicada na Paraíba, ela é escritora, educadora, tradutora e freira missionária, além de possuir uma ampla experiência como educadora popular. Autora de obras de ficção e não ficção, ela lançou seu primeiro livro em 2001 e, desde então, vem colecionando importantes premiações, como diversos Prêmios Jabuti e o Prêmio Casa das Américas. Entre seus livros estão: No risco do CaracolOuro dentro da CabeçaQuarenta DiasOutros Cantos e O voo da guará vermelha.

Para além da valiosa produção, Maria Valéria também é um importante símbolo para a “libertação da palavra das mulheres”. Em 2017, ela foi uma das vozes à frente da criação do Movimento Mulherio das Letras, coletivo literário feminista que reúne mais de cinco mil profissionais e artistas da cadeia criativa e produtiva do livro. O grupo tem núcleos atuantes em outros países, como Portugal, Estados Unidos e Alemanha, e realiza encontros nacionais e internacionais para possibilitar a publicação e incentivar a literatura produzida por mulheres, frequentemente invisibilizada no panorama nacional.

Em entrevista à equipe da Secec, ela fala sobre a homenagem do Encontro Regional das Letras e afirma que é uma questão de tempo para que a libertação chegue para todas, destacando que no campo literário isso não será diferente, tendo em vista o longo histórico de lutas contra o patriarcalismo e a contribuição das mulheres, desde sempre, no processo de humanização fundamental que é a palavra.

Secec: O Mulherio das Letras vem, ao longo dos últimos anos, capitaneando ações de incentivo e valorização da literatura feminina. Pensando em um panorama geral, como é o cenário da produção literária feminina atualmente no Brasil?

MVR: Já de início eu gostaria de dizer que prefiro falar literatura de autoria feminina e não simplesmente de literatura feminina. Isto porque não acredito que haja características especificamente femininas da boa literatura e essa expressão “literatura feminina” foi muitas vezes utilizada para se referir a um tipo de literatura sentimental, “domesticadora”, dirigida às mulheres segundo a visão de seu lugar no mundo que interessava ao patriarcalismo. Seja escrita por homens ou mulheres, a boa literatura é muito maior e mais ampla do que isso. Deve ser mesmo o contrário disso.

Uma mulher, quando escreve, deve ter o direito de escrever sobre o que quiser, sobre todos os aspectos da vida humana, e não apenas “assuntos de mulher”. As mulheres sempre escreveram, no entanto; não tinham a liberdade para publicar sem a permissão dos homens, pais, maridos, irmãos e governantes, que sobre elas detinham o poder. São notórios os casos das mulheres que, ao longo da história da literatura, tiveram de utilizar pseudônimos masculinos para poder publicar sua literatura ou simplesmente publicar como “anônimas”.

É isso o que creio que acabou, embora nem todas as mulheres tenham ainda chegado a esse ponto de liberdade, de poder publicar o que quiserem. No entanto, já sabemos que, daqui por diante, é apenas uma questão de tempo e atuação nossa para que essa libertação chegue a cada uma e ninguém mais poderá convencer as mulheres de que elas são menos capazes do que os homens e que devem se submeter incondicionalmente ao seu poder.

Esse processo não foi iniciado pelo movimento do Mulherio das Letras que, na verdade, é uma expressão do efeito, no campo literário, de todo um longo histórico de lutas das mulheres contra o patriarcalismo. O nosso Mulherio das Letras é muito mais uma expressão do que causa desse movimento histórico mais profundo que já se vinha desenvolvendo há tanto tempo. Hoje, no Brasil e pelo mundo afora, creio que qualquer análise honesta do panorama literário reconhecerá a alta qualidade da escrita assinada pelas mulheres: basta examinar as listas de finalistas dos grandes prêmios literários, aqui no Brasil e no mundo.

P­­­or outro lado, tendo sido silenciadas por tanto tempo, e tendo um ponto de vista próprio para olhar o mundo, é notável a contribuição original das mulheres em termos de temáticas, visões de mundo e modos de expressão que se tem espalhado hoje no mundo literário. Todos nós, mulheres e homens, temos a ganhar com esse enriquecimento dos pontos de vista a alimentar a literatura.

Secec: Qual a importância da articulação das mulheres escritoras em coletivos, grupos de leitura e de escrita, e demais movimentos para a cadeia criativa e produtiva do livro? Por que ainda se faz tão necessário esse tipo de projeto?

MVR: A experiência do movimento Mulherio das Letras e de outros coletivos de mulheres escritoras tem mostrado o quanto é mais fecunda a colaboração, em lugar da competição, para o enriquecimento do mundo literário. Parece-me que essa maneira de relacionar-se tem sido uma contribuição típica das mulheres e tem se mostrado extremamente profícua. Nós, humanos, o somos porque temos a palavra. Ampliar a nossa capacidade de receber e proclamar a palavra é fundamental para a nossa sobrevivência como espécie. Parece-me que a contribuição das mulheres, finalmente em vias de reconhecimento, tem tido desde sempre o papel fundamental nesse processo de humanização. Afinal, se observarmos as características do desenvolvimento humano, em qualquer sociedade, teremos que reconhecer que o acesso de cada indivíduo ao dom da palavra depende fundamentalmente das mulheres: somos nós mulheres que embalamos com canções e histórias os primeiros anos de vida tanto de mulheres quanto de homens, e são, assim, as mulheres as principais guardiãs e transmissoras desse fator fundamental da humanização.

Secec: O Encontro Regional das Letras será realizado pela primeira vez, como uma iniciativa da Secec e da BNB, com a intenção de fortalecer e valorizar as mulheres escritoras da nossa região. Entre os destaques do evento está o lançamento do selo da Coleção Mulheres Escritoras Contemporâneas, que passa a integrar o acervo da Biblioteca, com obras doadas por autoras de todo o país. Como essa ação, ou projetos similares, podem influenciar na produção e no consumo da literatura feminina contemporânea?

MVR: Essa valorização e a possibilidade de acesso, o mais amplo possível para todos, à literatura de autoria feminina é indispensável para a completude do processo de educação e desenvolvimento de todos nós, mulheres e homens. A libertação e amplificação da palavra das mulheres traz, sem dúvida nenhuma, uma nova esperança para nosso futuro como nação e como espécie.

Secec: Você foi escolhida como homenageada desta nossa primeira edição. Quais os significados que isso carrega, como você enxerga esse reconhecimento?

MVR: Embora não tenha sido eu a fundadora do movimento Mulherio das Letras − surgido realmente de um impulso coletivo, − por um acaso, talvez pela minha idade, acabei de certa forma representando esse amplo movimento de libertação da palavra das mulheres e de atenção à sua produção literária que sempre existiu, mas que por tanto tempo foi silenciada. Como se trata de um movimento e não de uma instituição, e eu já tenho poucos de vida anos pela frente, acho que não há perigo de que o movimento seja interpretado como obra individual e que possa esmorecer quando eu não estiver mais aqui. Então interpreto o fato dessa homenagem como estímulo a todas nós, para que nunca mais nos calemos e nem soltemos as mãos umas das outras.

Secec: Quais as mensagens que iniciativas como essa podem transmitir para uma nova geração de escritoras?

MVR: Creio que o mais importante é que se torne claro para as próprias mulheres escritoras e para leitoras e leitores em geral que a palavra elaborada pelas mulheres é fundamental, indispensável para compreender, da maneira mais ampla e profunda possível, a experiência humana e suas possibilidades de desenvolvimento. Tendo sido por tanto tempo silenciada e limitada, a palavra das mulheres apresenta-se como portadora de algo verdadeiramente novo. Precisamos dessas vozes para que se possa renovar a vida humana nesse nosso sacrificado planeta.

SERVIÇO:

Encontro Regional das Letras: Mulheres Escritoras do Centro-Oeste

16 e 17 de março de 2023, na Biblioteca Nacional de Brasília

Aberto ao público, sem necessidade de inscrição (sujeito à lotação do espaço)

Confira a programação completa

Seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*